Matéria publicada em Educação: docência e humanização - Editora EDUNISC - RS - 2011
Muito tenho dito sobre a necessidade de resgatarmos nossos valores humanos. A sociedade atual, dita moderna, adormeceu o que temos de melhor: nosso lado humano. Mergulhada numa ambição desmedida, numa invisibilidade diante do outro, numa falta de esperança, a sociedade se deixar levar por uma espécie de contra-valores. A situação se agrava quando nem mesmo podemos contar com nossos dirigentes, nossos representantes políticos. Os bons políticos que ainda restam faltam-lhes força e apoio; sobra o descrédito.
Minha causa é a causa de todos; sonho com dias melhores, com pessoas melhores, com um mundo melhor. É preciso lembrar a todos que não nascemos humanos, nos tornamos seres humanos. Se alguém não nos orienta nessa jornada, não nos tornamos seres humanos; é preciso acordar a sociedade para sua função primordial de formar seres humanos. Não temos outra saída para todas as mazelas da sociedade, é preciso urgentemente reverter o processo de desumanização que estamos passando. Restabelecer o pacto social, a ordem.
Não consigo pensar em outra maneira mais eficiente de retomarmos o crescimento humano que não seja passando pela escola e pela família. No entanto, devo admitir, vejo pouco comprometimento das duas instituições com os problemas morais e éticos da nossa sociedade. A ideia de uma educação humanizadora ainda é tímida. Nossas escolas estão cheias de professores desacreditados, desinteressados, desanimados com a possibilidade de retomar o crescimento humano; não se vêem como agentes do processo humanizador. Ainda somos reféns de uma educação fragmentada em disciplinas e de professores que acreditam “cumpridores de seus deveres” mas, quando entram na sala de aula “despejam” seus conteúdos em cima dos alunos e se esquecem do papel principal da educação:humanizar, formar cidadãos.
Não quero, de forma alguma, responsabilizar o professor disso ou daquilo. Mas é preciso notar que muitos ainda não entenderam direito a proposta da educação. Refiro-me a proposta dos parâmetros curriculares nacionais. “ O coração da sociabilidade do homem está na educação”, a frase dita por John Dewey traduz com elegância a proposta da educação no Brasil, a educação como uma experiência crescente e progressiva. Tanto o aluno como o professor deveriam estar o tempo todo imersos nesse crescimento.
É preciso repensar nossa prática, repensar nossos valores, nossa ética. Costumo dizer sempre, não há como educar na incoerência. Falar de respeito e não se dar o respeito, falar de justiça e não praticá-la, falar de dignidade e não ser capaz de exercê-la com competência. A escola e família tem sido o lugar das incoerências. Nem sempre estamos agindo de acordo com nossas crenças, conforme nossos objetivos. Daí a importância de um diálogo consistente, que venha propor uma revisão dos objetivos. O momento é delicado.
Tenho buscado maneiras de trazer à tona essas questões, propor mudanças capazes de devolver à sociedade o viés da humanização, dos valores humanos. Porém me deparo com questões delicadas, há muita complexidade envolvida na proposta de mudança. Nem sempre o professor está disposto a mudar. Para muitos é mais fácil continuar no seu ritmo de trabalho, mesmo que seja um ritmo descompassado, desafinado para nossa realidade atual. Já encontrei professores que literalmente diziam não terem nada com isso quando falei dos problemas sociais, da indiferença das pessoas, da falta de gentileza, do descaso com os alunos, do problema da formação humana, da falta de virtudes, enfim, é complicado promover mudanças quando os principais agentes de mudança estão desacreditados.
Como nos lembra a escritora Marina Colasanti:
“A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.”
Penso que estamos assim como ela descreve, estamos acostumados demais, acreditamos estar evitando feridas quando na verdade estamos nos ferindo, a nós mesmos, e aos outros. Assim tem sido a vida em algumas instituições de ensino. Alguns professores simplesmente não acreditam na possibilidade de mudança, estão anestesiados diante do caos social, diante da dor alheia. Para evitar feridas eles se esquivam da tarefa educativa, e ao se esquivarem deixam um rasto de dor e sofrimento. Quantos jovens estão hoje presos porque não tiveram quem lhes mostrasse o caminho da dignidade, quantos poderiam estar em outro lugar, mas não tiveram a chance de vencer a natureza selvagem que habita em nós. Hoje são marginais, vivem a margem da sociedade, não conseguiram fazer parte dela.
Não é hora de procurar culpados, mas é hora sim de fazer algo para mudar o quadro vergonhoso que se encontra a sociedade. Nossos professores precisam ser valorizados, respeitados; é preciso restituir-lhes a dignidade perdida. Muitos estão imobilizados diante do caos social. Tornaram-se vítimas dos contra-valores da sociedade. Estão, eles mesmos, presos na caverna do desconhecimento, na escuridão. E assim, nessa falta de rumo para as próprias vidas, não conseguem ajudar, precisando eles de ajuda.
Enquanto escrevia esse texto recebi por email uma história enviada por uma amiga. O relato, sem autoria, embora tenha uma intenção política, não deixa de ser interessante para pensarmos na questão da humanização na escola. Transcrevo um trecho da história:
“Havia um professor de química em um grande colégio com alunos de intercâmbio em sua turma. Um dia, enquanto a turma estava no laboratório, o professor notou um jovem do intercâmbio que continuamente coçava as costas e se esticava como se elas doessem. O professor perguntou ao jovem qual era o problema. O aluno respondeu que tinha uma bala alojada nas costas, pois tinha sido alvejado enquanto lutava contra os comunistas de seu país nativo que estavam tentando derrubar seu governo e instalar um novo regime, um "outro mundo possível". No meio da sua história ele olhou para o professor e fez uma estranha pergunta: "O senhor sabe como se capturam porcos selvagens?"
O professor achou que se tratava de uma piada e esperava uma resposta engraçada. O jovem disse que não era piada. "Você captura porcos selvagens encontrando um lugar adequado na floresta e colocando algum milho no chão. Os porcos vêm todos os dias comer o milho gratuito. Quando eles se acostumam a vir todos os dias, você coloca uma cerca, mas, só em um lado do lugar em que eles se acostumaram a vir. Quando eles se acostumam com a cerca, eles voltam a comer o milho e você coloca um outro lado da cerca. Mais uma vez eles se acostumam e voltam a comer. Você continua desse jeito até colocar os quatro lados da cerca em volta deles com uma porta no último lado. Os porcos que já se acostumaram ao milho fácil e às cercas, começam a vir sozinhos pela entrada. Você então fecha a porteira e captura o grupo todo.”
"Assim, em um segundo, os porcos perdem sua liberdade. Eles ficam correndo e dando voltas dentro da cerca, mas já foram pegos. Logo, voltam a comer o milho fácil e gratuito. Eles ficaram tão acostumados a ele que esquecem como caçar na floresta por si próprios, e por isso aceitam a servidão."
No caso da história o jovem queria mostrar ao seu professor que a bala era o preço pago pela liberdade. Mas aqui, pensando na educação e na nossa sociedade fica a seguinte pergunta: será que também não somos vítimas dessa “cerca”? O objetivo maior na educação não está sendo escamoteado por razões menores? Penso que perdemos nossa liberdade e nem mesmo nos demos conta disso. Aceitamos uma espécie de servidão ditada pelo consumismo desenfreado, pelo hedonismo, pela ditadura da beleza, pela falta de respeito, de gentileza e tantas outras formas de aprisionamento da sociedade atual. É preciso jogar as “cercas” no chão. É preciso lembrar que há outra forma de viver mais digna, aonde as pessoas não sejam apenas instrumento para se atingir algo. Voltando ao exemplo me pergunto como serão os filhotes que nascerem dentro do cercado. Certamente não irão precisar caçar comida, e quem sabe futuramente nem mesmo saberiam como fazer isso. É bem provável que no futuro se alguém tirar a cerca eles permanecerão lá, as cercas já estariam dentro deles. Vocês devem estar se perguntando onde quero chegar com esse raciocínio. É simples, criamos “cercas” dentro de nós mesmos. Fomos condicionados a certos comportamentos e quando nos demos conta é como se isso fosse normal. Um bom exemplo disso é o estresse. As pessoas usam o “estresse” para justificar a falta de educação, a falta de vergonha da cara, o mau humor e por aí adiante. Leila Ferreira em seu último livro “A arte de ser leve“ nos lembra bem essa questão. Segundo ela o estresse acabou virando uma espécie de desculpa universal para comportamentos injustificáveis. É como ficar um tempo dentro de uma “cerca”, no início ela incomoda, ela agride, mas com o tempo as pessoas passam a achar normal. Quantos comportamentos bizarros não se tornaram normais nos dias de hoje. Penso que houve o tempo de transição em que as pessoas se assustavam, mas depois virou normal. Sinceramente, prefiro ser careta, antiquado, velho, mas não quero me acostumar com a falta de educação, com a falta de gentileza, com o mau humor, com a falta de respeito pelos mais velhos, me recuso a achar isso normal, para mim será sempre anormal. E é lamentável que isso aconteça dentro da escola. É triste saber que aqueles que deveriam ensinar o caminho para uma vida ética estejam desacreditados do mundo. Se nós educadores não somos capazes de edificar a criança com bons hábitos e boas virtudes, ela corre o risco de adquirir maus hábitos.
Tenho buscado meios de “acordar” as pessoas para essas questões. Mostrar a importância de resgatar os valores humanos, as virtudes e a ética.
Meu trabalho com os professores tem buscado a reflexão como ponto de partida. Voltando novamente à história dos porcos, eu diria que num primeiro momento é preciso desacreditar de uma suposta verdade, é preciso ir além das “cercas”. Todos nós temos nossas verdades endurecidas. Costumo dizer que moramos no país da Gabriela, “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim, Gabriela...” É a famosa síndrome de Gabriela. As pessoas acreditam pouco nas mudanças. Enquanto elas acreditam que as “cercas” são a realidade última, não vão desejar ir além. Então, num primeiro momento tento romper com o paradigma da verdade única. Não é complicado fazer isso, basta lembrar que os nossos cinco sentidos nos enganam. Aquilo a que chamamos de realidade é, nada mais nada menos, que uma leitura do mundo. Uma leitura dentre tantas outras possíveis. Tomemos como exemplo a felicidade. Mas, antes quero deixar claro que a felicidade é palco de milhares reflexões. São tantas leituras que levaríamos um bom tempo para conhecê-las em profundidade. Mas aqui gostaria de fazer apenas um recorte na ideia que nossa sociedade atual carrega de felicidade. Para a grande maioria das pessoas, nos dias atuais, felicidade significa realização dos desejos. Se a pessoa está realizando seus desejos ela é feliz, pensam as pessoas. Para muitos essa ideia se torna um imperativo capaz de governar toda uma vida. Se sentem tristes e infelizes diante da impossibilidade de realizar seus desejos. Acreditam veemente morar a felicidade na realização dos desejos.
Parto da reflexão como uma forma de abalar as certezas, uma maneira de fragilizar certezas petrificadas. Diante desse sujeito que crê ser a felicidade realização de desejos eu posso fazer a seguinte colocação: quando eu nasci eu desejei um brinquedo, depois desejei uma bicicleta, depois desejei um carro, uma namorada, desejei um diploma, uma casa, um carro e por aí a fora. Quando eu estiver velhinho ainda vou desejar mais um ano de vida, ou seja, vou morrer desejando. Se a felicidade for realização de desejo como quer o capitalismo e consumismo, eu estou condenado, ou melhor, estamos todos condenados, iremos morrer infelizes, pois com ou sem o capitalismo morreremos desejando. Percebem que é como jogar a “cerca” no chão? Quem sabe depois disso o sujeito vai procurar a felicidade em casa, na família, no trabalho; importante é tirar a “cerca”. Assim como essa podemos propor outras reflexões na tentativa de resgatar algo perdido em meios aos lucros e à desenfreada ganância da humanidade. Quantos pais não se queixam dos filhos de 30 anos morando dentro de casa, dos adolescentes de 32, 35. Particularmente, vou buscar respostas em outros lugares, prefiro questionar a busca narcísica da sociedade moderna, a preocupação doentia em não envelhecer, a corrida aos especialistas em botox e todas as diversas técnicas de se esticar, para encontrar respostas para esses adolescentes que não querem crescer. Sinceramente acredito que mandamos a seguinte mensagem para os adolescentes de hoje: não amadureçam, não envelheçam, não fiquem adultos, pois isso é muito triste, não me vê aqui, correndo atrás da juventude, desesperado para parecer jovem como você!
É possível propor novas maneiras de enxergar o mundo aos nossos alunos, mas antes, precisamos com urgência, fazer esse exercício com nós mesmos. Como podemos querer que o professor faça algo pelo seu aluno se ele próprio está prisioneiro desse modelo vigente? Não quero parecer irresponsável, mas quando ouço pessoas falando de educação continuada, eu fico assustado. Como assim? Algum dia alguém achou que era possível não buscar mais conhecimento? Pensou estarem prontos? Sei que exagero na minha colocação, mas se assim faço, é proposital. É por ver durante anos e anos professores acomodados. Mas, já que falei de educação continuada, porque não concentrar nossa atenção, nosso esforço, na formação humana? Penso ser esse o caminho para grande mudança. Partilhar situações e experiências positivas, investir no respeito, na justiça, na solidariedade, na paciência, na tolerância, na simpatia, no amor, na generosidade, enfim, investir na valorização do ser humano como um fim e não como um meio, como propõe o consumismo. Temos muito que fazer, e é preciso discutir alternativas que auxiliem o educador a sair fora dessa “cerca” imposta pelo poder econômico e oportunizar a visão de uma nova realidade.
Atualmente tenho me dedicado a estudar a história da educação no Brasil. Me chama atenção o fato de encontrar em todas as propostas educacionais uma evidente preocupação com a formação da cidadania. Nos documentos dos parâmetros curriculares nacionais fica muito evidente a preocupação em formar cidadãos. Eu diria mais, no meu entendimento todas as disciplinas são vistas como ferramentas para se atingir a formação do cidadão. O objetivo maior da educação é a formação do cidadão. Porém me estranha saber que na prática essa vontade não acontece como deveria. Diria mais, nem na formação acadêmica dos professores em nosso país não se tem essa preocupação. Mas, vamos por partes, se como professor eu vou formar um cidadão, preciso saber que o cidadão é o indivíduo que está no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado e, penso que devo saber também quais são meus direitos e deveres, pois somente assim estou apto a transmitir esse conhecimento. Acontece que nossos direitos e deveres estão em documentos como a nossa constituição. E aí eu pergunto: quantos professores em nosso país têm conhecimento da constituição? Quantos já leram os documentos dos PCNs?
Às vezes penso, penso não, estou certo disso: estamos no caminho errado. Se estivéssemos no caminho certo, estaríamos preocupados com a cidadania, com a dignidade da pessoa humana, com os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; estaríamos preocupados em construir uma sociedade livre, justa e solidária; em erradicar a pobreza e a marginalização, em reduzir as desigualdades sociais e regionais; em promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e muitos outros direitos como a solução pacifica dos conflitos; o repúdio ao racismo. Se não perceberam acabo de citar partes do 1º artigo da constituição de 1988. Impossível falar de cidadania, de cidadão, sem ter conhecimento sobre os direitos civis e políticos do Estado. Embora nosso projeto educacional priorize a formação de cidadãos, nossa formação não condiz com a realidade desejada.
Diante disso acredito que a mudança deve começar dentro de cada um de nós. A melhor forma de ensinar algo a alguém é pelo exemplo. Quantas vezes ouvimos isso, é preciso romper com a descrença que abala a sociedade.
Estou certo da mudança, vislumbro, contrariando certas ideias pessimistas que rondam nossa sociedade, que o professor reconquistará seu lugar essencial na escola, mas com suas crenças renovadas, tanto como sujeito digno, quanto como portador de um saber e de uma autoridade que lhe é justa. Será ele o representante da sociedade adulta, aquele em quem a criança desejosa de crescer, poderá se espelhar.
Meu abraço a você professor, educador, que essa seja nossa luta.
Teuler Reis
Artigos
Ética, um conhecimento transformador
- Detalhes
- Acessos: 916