TRECHOS DA MATÉRIA - REVISTA PROFISSÃO MESTRE - JULHO DE 2011
CAPA: UM BASTA À LEI DO MAIS FORTE
Escolas e professores precisam melhor se preparar para combater o bullying, que exclui e deixa marcas tão profundas que perseguem vítimas por toda a vida Um dia era um empurrão. No outro, uma agressão verbal, como por exemplo: “Ela não vai ser nossa amiga, porque tem cabelo de bombril”. Ou: “Ela não vai brincar, porque é a Olívia Palito”. Os xingamentos eram diários e com uma intensidade tão cruel que transformaram uma menina antes alegre, espontânea e carinhosa em uma criança tímida e insegura. Aos olhos dos professores, a estudante era também motivo de gracejos, vítima da insensibilidade de quem deveria educar. Em casa, não conseguia explicar o que se passava. Assim, silenciosamente, começou a ser consumida pela depressão, a ponto de pensar em formas de isolamento e até em suicídio.
Dos 5 aos 12 anos, Martha*, hoje com 31 anos, uma bem-sucedida profissional de nível superior, foi vítima de uma crueldade que nem de longe deve ser confundida com “brincadeira de crianças”. O que a menina tinha na época dificuldades de identificar ganhou nome e uma definição bem clara. O bullying repete sempre as mesmas características: um assédio de natureza física e psicológica, em que agressividade e continuidade causam dor, angústia e sofrimento à vítima, excluída por sucessivos insultos, intimidações e atos de menosprezo. Situação pela qual, neste exato momento, estão passando milhares de crianças brasileiras, sem que, muitas vezes, escolas e professores estejam preparados para conter os ataques. Dados da Pesquisa Nacional da Saúde Escolar, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2009, mostram claramente como o bullying é frequente nas instituições de ensino brasileiras. Segundo o levantamento, 25,4% das crianças sofriam bullying. Distrito Federal, com 35,6%, seguido por Belo Horizonte, com 35,3%, e Curitiba, com 35,2%, foram as capitais com maior frequência de alunos que declararam ter sofrido esse tipo de violência alguma vez nos 30 dias que antecederam as entrevistas. O fenômeno foi verificado em maior proporção nas escolas privadas (35,9%) do que nas instituições públicas (29,5%).
Os efeitos colaterais dessa situação são imensuráveis e as consequências, também. No caso de Martha, os anos se passaram e ela sobreviveu aos agressores, mas não superou as agressões. Ainda hoje, admite carregar com angústia cicatrizes no corpo e no coração. “Hoje consigo enxergar como os professores foram extremamente omissos. Estudei em uma das escolas públicas mais tradicionais da capital mineira. Como toda escola, ela também tem sua elite. E eu não pertencia a ela. Crianças consideradas mais ‘ricas’ e ‘bonitas’ ganhavam destaque e o ‘resto’ era simplesmente ignorado”, lembra. Ela conta que seus pais trabalhavam o dia inteiro e, além do pouco tempo, também não tinham consciência do que estava ocorrendo. “Na escola, as formas de destaque eram sempre materialistas. As crianças que tinham material escolar mais moderno ou as que iam mais arrumadas eram consideradas as melhores. Até o tipo de merenda contava. E eu não levava vantagem nesses aspectos. Assim, gratuitamente, muitas vezes era criticada em público por professores, por minha letra ou porque meu cabelo estava desarrumado. Não sei se percebiam, mas com isso davam munição para que os outros alunos me intimidassem. Não tenho a menor saudade desse tempo”, relembra. Só aos 13 anos, quando trocou de escola, a situação mudou. “Pedi a Deus que aquela fosse a minha chance de mudar o rumo da minha vida e dos meus pensamentos”, conta Martha.
Como ela, alguns conseguem vencer o trauma, apesar de nunca esquecê-lo. Outros sentem-se perseguidos pelo resto da vida, tornando-se profissionais inseguros, amargurados e com baixa produtividade. E há os que não conseguem superar a dor. São os que cometem atos extremos, como suicídio. No desenrolar desse tipo de caso estão, ainda, crimes impensáveis, como ocorre com frequência nos Estados Unidos e aconteceu pela primeira vez no Brasil, no episódio recente da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro, na qual 12 crianças foram executadas pelo ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira, que se matou em seguida.
Intervenção escolar
O psicanalista Teuler Reis – também psicólogo e autor de dois livros, entre eles Educação e Cidadania: a batalha de uma educação comprometida, pela WAK Editora, observa que o professor é peça fundamental contra o bullying. “Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) fica claro o objetivo maior da educação: formar cidadão. É papel da escola investir na formação humana, trabalhar virtudes e valores. Mas já presenciei professores que agiam como brutos em sala de aula. Agiam como perversos diante dos alunos. O professor consciente do seu papel de exemplo é capaz de convencer o aluno a investir nos valores humanos, na ética”, afirma Reis, que durante anos lecionou para turmas do 5º ao 8º ano do ensino fundamental.
Ele dá exemplos práticos de como o professor pode interferir no momento em que alguma agressão moral acontece. “Se uma criança rotula a outra com apelido que desagrada e insiste em manter as provocações, estamos diante de um fato a ser analisado. É preciso, nesses casos, a intervenção de um adulto preparado. Digo preparado, porque lamentavelmente nossas escolas estão cheias de pessoas despreparadas. Essa tem sido uma das minhas preocupações: professores comprometidos com a ética e com os valores humanos. Diante da angústia de uma criança, o professor deve parar sua aula e discutir com os alunos o que se passa. Ou encontrar o momento adequado para trazer a questão de volta”, afirma Reis.
O psicólogo conta que, certa vez, resolveu trabalhar a vaia na sala de aula, pois percebeu que alguns alunos vaiavam sem nem mesmo saberem por que. “Comecei a perguntar aos alunos – que eu sabia não terem conhecimento do motivo da vaia – o que eles estavam vaiando.” Em seguida, o especialista perguntou a vários estudantes qual era o sentimento deles quando eram vaiados ao perguntar algo ou ao fazer uma observação em sala. “Fui anotando e, em pouco tempo, o quadro estava cheio de termos que expressavam angústia, medo, sofrimento, repreensão, sufocamento, derrota, etc. Nesse momento, perguntei à classe onde podíamos encontrar situações parecidas de vaias. No estádio de futebol, para fazer o adversário perder, foi a resposta mais evidente. As perguntas que se seguiram foram: ‘E ali na sala de aula estavam querendo fazer o colega perder? Queriam calar o outro?’ Os alunos que eram vítimas falaram claramente que não se sentiam à vontade para fazer novas perguntas. A vaia teria, então, a função de calar, de fazer com que os alunos se habituassem a não dizer o que pensam”, relata.
Semanas depois, ele foi surpreendido por um professor que se dizia envergonhado: “Ele contou ter pedido, em algum momento da aula, uma vaia para um aluno. A sala não reagiu. Permaneceu em absoluto silêncio. Os estudantes disseram não ser correto vaiar e contaram que um professor havia feito um trabalho muito legal para mostrar isso”, conta o psicanalista. Para Teuler Reis, mais importante que “despejar” conteúdo nos estudantes, é preciso que o educador atente a questões sociais, sem fazer “vista grossa” à agressão que se passa na frente dele. “O papel do professor é antes de mais nada o de lapidar a alma e construir relações de qualidade. É ensinar que humor se aprende e que tolerância é algo ao alcance de todos. A escola é uma lição de mundo e, como tal, deve pensar no humano em primeiro lugar”, explica.
Pedidos de socorro
A professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Sandra Pereira Tosta, doutora em Antropologia, explica que, nos casos de bullying, tanto o agressor quanto a vítima dão sinais de que algo está em desequilíbrio. “Ocorre um silenciamento e um isolamento do aluno que sofre os ataques. O desinteresse, o baixo desempenho escolar também são indícios de opressão. Diante de mudanças de comportamento do aluno, o professor deve ficar atento e procurar dialogar com ele e com sua família”, observa.
No livro Bullying Escolar: Perguntas e Respostas, da editora Artmed, os autores Cleo Fante e José Augusto Pedra oferecem caminhos para que os adultos percebam a agressão e se posicionem. Vários aspectos podem ser verificados para identificar a prática, como observar se o estudante se isola do grupo durante o recreio ou prefere ficar próximo do professor (ou de outro responsável). Até o desleixo gradual com a aparência ou tarefas escolares podem ser indícios.
Já o agressor, que também merece devida atenção, é, para a maioria dos especialistas, uma pessoa que se sente superior às outras. Ele faz ameaças, incentiva brigas, pega à força objetos e pertences do colega e o intimida. Enquanto a maior parte dos agressores é do sexo masculino e se vale da força física, as meninas adotam táticas mais disfarçadas, mas não menos cruéis, abusando do lado psicológico de crianças consideradas mais fracas.
O psicanalista Teuler Reis observa que o aluno que pratica a violência pode ser tão vítima do sistema quanto o agredido. “Antes de acusar, é preciso ouvir, dialogar. A ética é um apelo emocional, isso nos coloca em outro lugar enquanto educadores. É preciso falar com o coração para o coração. O aluno precisa sentir que sua atitude é condenada pela sociedade, precisa se ver no caminho errado. Caso contrário repetirá sua atitude.”
O especialista adverte: “Será fácil para a criança expressar a agressão se a cultura da escola favorecer essa postura. Por outro lado, se a escola não tem o hábito de discutir valores, de falar do tema abertamente, a vítima se sentirá desamparada e, em consequência, ficará remoendo sua dor solitariamente. Friso que a escola é, por excelência, um lugar de formação humana, lugar de socialização. O que precisamos é colocar em prática”, observa.
Para quem precisa ter olhos e ouvidos bem abertos para evitar os abusos na escola, até a hora da chamada pode ser uma oportunidade para observar os estudantes. “O aluno respondia a chamada e eu fazia questão de olhar para ele. Alguns achavam graça nesse fato. Mas, naquele momento eu conseguia perceber cada um. Se estava triste, se havia mudança no humor. Se notava algo diferente, dava um jeito de me aproximar, discretamente, e perguntar se estava tudo bem, se podia ajudar em algo. Muitas vezes o aluno me procurava depois e desabafava”, conta Reis.
*Nome fictício a pedido do entrevistado.
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