Uma das tarefas mais importantes dos pais e educadores, nos dias de hoje, é despertar o desejo da criança pela escola, fazer da escola um lugar de revelação, um lugar onde ela busque entrar em contado com a realidade, de forma criativa e estimulante. Essa tarefa às vezes se torna bastante difícil, quando o mundo fora da escola parece despertar com mais emoção e entusiasmo seu desejo.

 
As crianças encontram, nas novelas, nos filmes, nos computares, internet, videocassete etc., acesso a um mundo de símbolos e significados que as deixam fascinadas. O que acontece como reflexo desse distanciamento é o desinteresse pela escola. Assim, o lugar da escola fica destituído de investimento. A escola vira uma obrigação. Hoje podemos perceber a escola repensando essas questões e indo em busca desse desinvestimento, no sentido de mostrar às crianças os valores da leitura e a importância da escrita. É preciso despertar nelas o desejo de estar na escola, mas como? O que podemos fazer para que a escola seja novamente um lugar idealizado pela criança; uma troca satisfatória? Bartolomeu Queirós, em “Ler, escrever e fazer conta de cabeça”, nos diz:


“Um pesar estrangeiro andou atordoando meu pouco entendimento. Ir para escola era abandonar as brincadeiras sob a sombra antiga da mangueira; era renunciar o debaixo da mesa resmungando mentiras com o silêncio; era não mais vistoriar o atrás da casa buscando novas surpresas e outros convites. Contrapondo-se a essas perdas, havia a vontade de desamarrar os nós, entrar em acordo com o desconhecido, abrir o caderno limpo e batizar as folhas com a sabedoria da professora, diminuir o tamanho do mistério, abrir portas para receber novas lições, destramelar as janelas e espiar mais longe. Tudo isso me encantava”.
Acredito ser possível estabelecer uma nova relação criança-escola; e para alcançar este objetivo devemos nos apossar de determinados conhecimentos que são fundamentais para uma nova posição. Exemplo disso é compreender a verdadeira função de ler e escrever, muitas vezes considerada de forma errônea.


Segundo Bartolomeu “ Não se escreve para comprovar o domínio de uma técnica ou para expressar o entendimento de determinadas regras. Escreve-se ao ter o que dizer. Do mesmo modo, não se lê para praticar a aprendizagem do alfabeto. Lê-se para tomar posse do já desnudado pelo homem, para ampliar os limites, para apropriar-se da fragilidade, para recuar as fronteiras. Lê-se para somar-se e escreve-se para dividir-se...ensinar a ler e escrever é confirmar a capacidade inventiva do sujeito, é reconhecer a sua vivência perceptiva diante do mundo, é implicá-lo na experiência do outro”.


Por outro lado, é preciso o educador ter um conhecimento sobre o desenvolvimento emocional das crianças, as fases do desenvolvimento, os conflitos e ambivalências. A criança que chega à escola pode, tendo em vista o lugar que ocupa em seu conflito edípico, sentir-se rejeitada pelos pais e tomar a escola como um castigo, ou como uma forma de punição. Durante uma palestra, numa escola primária, uma professora me relatou que um aluno se escondia sempre atrás da porta e que era preciso convidá-lo para se assentar, caso contrário ele permanecia imóvel. No momento em que falei do complexo de Édipo, ela imediatamente contou que esse aluno, essa criança, fora diversas vezes espancada pelos pais, como forma de se verem livres, para terem relações sexuais. Podemos pensar como se sente uma criança a quem é negada a participação numa relação em sua própria casa, e aqui eu chamo atenção para o fato de que ela não pensa em termos de relações sexuais. A criança deseja tomar o lugar do pai, mas ao mesmo tempo ela não quer imaginar o que  realmente implica ser marido e pai; ser o pai significaria ficar fora o dia inteiro para trabalhar, significa ficar longe da mãe. A criança não quer isso, a fantasia edípica é uma situação em que o menino e a mãe nunca se separam, por um momento sequer. Assim, podemos de certa forma entender o comportamento dessa criança em sua sala de aula.


Problemas como esses são relatados a todo instante pelos professores. Entretanto, na maioria das vezes, há carência de profissionais, psicólogos, psicopedagogos, treinados para atender a essas demandas. Na maioria dos casos não existe qualquer assistência, e os recursos são poucos. É nesse sentido que acredito se possível resgatar os contos de fadas nas escolas.
Os contos de fadas, durante toda a história da humanidade, vêm desempenhando um papel fundamental na vida das crianças, tanto no aspecto emocional quanto intelectual.   No entanto, houve um tempo em que os contos de fadas foram considerados por pais e educadores como falsos e cheios de crueldade. Caindo em esquecimento, foram desprezados e acabaram banidos, sob a alegação de irreais e selvagens. Sabemos, porém, que tais considerações se restringem apenas a determinadas regiões. Nas sociedades africanas, por exemplo, o conto sempre foi e continua sendo o principal meio de transmissão de conhecimentos. Na França, no século XVIII, para amenizar a pobreza, a fome, o medo, os camponeses contavam histórias em torno das lareiras, nas noites longas de inverno. Os contos não só alimentavam a imaginação e a fantasia daquelas crianças, como também davam sugestões em formas simbólicas de como lidar com suas questões mais importantes. As crianças podiam, a partir deles, formar conceitos de origem e propósitos do mundo.


Hoje podemos recorrer a vários mestres da literatura para percebemos a importância dos contos em suas trajetórias. Graciliano Ramos, em seu livro Infância, conta que, quando teve a infeliz idéia de abrir um desses folhetos de papel ordinário, seu pai tentou avivar sua curiosidade, valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas. Disse ainda que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Graciliano nos conta que isso pareceu absurdo, que os traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. Ele nos conta a seguir toda a luta de seu pai para alfabetizá-lo. Segundo ele, iniciara a escravidão imposta ardilosamente. Aos nove anos era quase analfabeto. Seu pai já havia desistido da tarefa, tornara-se indiferente com ele. Numa noite, depois do café, seu pai lhe manda buscar um livro e determina que ele principie a leitura. Ele, apavorado, na esperança de que alguém interrompesse, começa a leitura. Mastigando as palavras, gaguejando, repisando linhas, sem ouvir gritos. Seu pai, no meio do capítulo, pergunta se ele estava compreendendo o que lia. Explicou que se tratava de uma história, e resumiu a parte já lida.
“um casal com filhos andava numa floresta, em noite de inverno, perseguido por lobos, cachorros selvagens”.
Segundo Graciliano, ele dormiu com os lobos e o lenhador e acordou com eles. conta que as horas voaram. No dia seguinte seu pai pediu novamente o volume. Na terceira noite ele foi buscar o livro espontaneamente, mas seu pai, com um gesto carrancudo, afastou-o. “Nunca experimentei decepção tão grande” conta Graciliano. Para ele, “era como se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse”.
Podemos nos perguntar o que havia de tão atraente naquela história, o que exatamente fisgou o desejo de Graciliano? Para responder a essa pergunta, gostaria de retomar a passagem em que o pai de Graciliano diz a ele o que eram aquelas linhas mal impressas, falhadas. Em outras palavras, quais os significantes usados pelo pai para responder a sua pergunta. A resposta é que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. As palavras se tornam armas para Graciliano. Aos nove anos de idade, ele se depara com uma história em que um casal com filhos se encontra perdido na floresta, com lobos e cachorros selvagens. Ficou tão fascinado pela história  que não conseguiu se desligar dela. Sabemos, no entanto, que os contos podem dar sugestões às crianças de como lidar com suas questões internas e de como tornar claras emoções e ansiedades. O que Graciliano vivia naquele momento era provavelmente algo como estar perdido em uma floresta, e foi possivelmente sua identificação com a história que conferiu tamanha importância à escrita e leitura. Ele se agarrou às “armas terríveis” que seu pai lhe apresentou. Graciliano iniciou, a partir desse episódio, uma busca interminável à literatura.


Podemos também encontrar, nos textos de Bartolomeu Queirós, a presença dos contos de fadas como algo marcante de sua infância. No caderno de Informação e Arte, “Palavra Imagem”, ele nos diz: “Bruxas, reis, madrastas, anjos e assombrações, afogamentos e encantamentos contidos nas histórias me revelavam o livro. Decifrá-lo deixou de ser o meu desejo. Suas tantas leituras me fascinavam. A incapacidade de esgotar em enunciados e nuances do universo passou a ser a minha maneira de conhecer. E se muitas histórias eu ouvia, mais o livro ganhava em profundidade, entendimento e mistério”; ou ainda: “ As histórias me aproximavam das palavras escritas. Saber ler passou a ser ganhar outras portas, encontrar novos alicerces, desequilibrar o sabido, desconfiar da permanência. Ler era o que de melhor eu podia fazer por mim. Ler, não para saber, mas pelo prazer de receber notícias de outras inquietações”.
Quantas crianças não chegam à escola em busca de outras inquietações, em busca de novas notícias. Se trabalho no sentido de resgatar os contos de fadas, é partindo do pressuposto de que os contos retratam, de forma imaginária e simbólica os passos essenciais do crescimento e da aquisição de uma existência independente. Enquanto divertem a criança, esclarecem-na sobre si mesmo e contribuem para o desenvolvimento de sua personalidade, desenvolvendo o desejo de apreensão do mundo.

 
Uma mãe, sabendo do meu trabalho, enviou-me um relato de uma experiência com seu filho de três anos. Segundo ela, após assistir pela segunda ou terceira vez ao filme – A Bela Adormecida – seu filho pediu, muito sério, que ela lhe comprasse uma roupa de príncipe. Daí ele iria pegar sua espada e casar com a princesa. Sua mãe lhe perguntou se ele lembrava do nome dela, quem era a princesa. Ele respondeu que a princesa era ela, e iria matar o dragão com sua espada. A mãe, por sua vez, embarcou na fantasia dele e perguntou quem era o dragão. Respondeu, sem titubear, que o dragão era o seu pai.


Um menino sempre se vê nesse papel principal. A história implica que: não é o pai aquele cujo ciúme impede você de ter mamãe com exclusividade, é um dragão malvado. O que você na verdade deve ter em mente é matar o dragão. A história dá cunho de veracidade ao sentimento do menino de que a mais desejável das mulheres está presa por uma figura malvada. A inocência do herói com quem a criança se identifica demonstra, por procuração, a inocência da criança, de modo que, em vez  de se sentir culpada por essas fantasias, a criança pode sentir ela mesma como o herói orgulhoso. No caso das meninas, os problemas edípicos são diferentes. As histórias de fadas que ajudam-na a enfrentar sua situação edípica são de caráter diverso. O que impede seu desejo em relação ao pai é uma mulher mais velha e de más intenções ( isto é, a mamãe ). Mas, como a menina deseja continuar desfrutando dos cuidados amorosos da mãe, também existe uma mulher no passado ou na lembrança dos contos de fadas, cuj imagem feliz é mantida intacta. A menina deseja ver-se como uma jovem linda, uma princesa, que está presa pela figura feminina malvada e egoísta e, por conseguinte, sem acesso ao príncipe. O pai real da princesa aprisionada é retratado como benevolente, mas incapaz de vir em socorro de sua filha adorável. Em “Rapunzel” é uma promessa que o bloqueia. Em “Cinderela” e “ Branca de Neve” ele parece incapaz de se defrontar com a madrasta todo-poderosa. Na fantasia edípica da menina a mãe é dividida em duas figuras: a mãe boa, maravilhosa, pré-edípica e a madrasta edípica. Identificando-se com o conto, a menina pode reduzir a culpa em relação àquilo que deseja que aconteça à (mãe) madrasta que se encontra no seu caminho.


Assim, tanto as meninas como os meninos, graças ao conto de fadas, podem gozar plenamente as satisfações edípicas na fantasia e na vida real, mantendo boas relações com os dois pais. É também essa capacidade que a criança tem de se apossar dos contos de fadas e simbolizar algo tão problemático como o conflito edípico que garante aos contos de fadas um lugar especial em nossas vidas e, por que não, em nossas escolas.


É muito importante destacar, aqui, a viabilidade de se trabalharem os contos de fadas dentro da escola, uma vez que o professor só terra que contar, ele não precisa fazer nada alem de contar.


O conto de fadas deve ser encarado como um presente dado à criança, sua função é particular. Devemos pensar no conto como um jogo de lego, onde as peças são dadas, e cada criança monta o que lhe convier, revelando sua particularidade, sua individualidade a ser respeitada.

Teuler Reis/Fórum de Educação: Psicologia da Educação...de quem? 07/06/1997

Joomla templates by a4joomla